A versão mais conhecida conta como a Bela, a mais jovem de quatro irmãs, tornou-se, graças à sua bondade e abnegação, a preferida do pai.
Quando em lugar dos caros presentes exigidos pelas irmãs pede -lhe simplesmente uma rosa branca, está consciente apenas da sinceridade interior dos seus sentimentos. Não sabe que está a ponto de pôr em perigo a vida do pai e o relacionamento ideal existente entre os dois. Ele vai roubar uma rosa branca do jardim encantado da Fera que, irritada com o roubo, exige que o culpado volte dentro de três meses para ser punido, provavelmente com a morte. (Ao conceder ao pai este prazo para voltar à casa com o presente, a Fera age de maneira contrária ao seu caráter, sobretudo quando se dispõe a mandar-lhe, também, um baú cheio de ouro. Como comenta o pai da Bela, a Fera parece ser a um tempo bondosa e cruel.)
A Bela insiste em tomar o lugar do pai e, passados os três meses, vai ao castelo para receber o castigo . É instalada num bonito quarto onde não tem motivos de aborrecimentos ou de receios, com exceção da visita ocasional da Fera, que aparece para perguntar-lhe se um dia aceitará seu pedido de casamento. A Bela recusa o pedido sistematicamente. Um dia, vendo no espelho mágico a imagem do pai doente, implora à Fera que a deixe ir confortá-lo, prometendo voltar dentro de uma semana. A Fera deixa-a ir, dizendo-lhe, entre tanto que morrer á se ela a abandonar.
Em casa, a radiosa presença da Bela traz alegria ao pai e inveja às irmãs, que tramam retê-la por mais tempo. Por fim, a Bela sonha que a Fera está a morrer de desespero e, dando-se conta de que seu prazo já se esgotara, volta para fazê-la reviver.
Esquecendo-se da feiura da Fera que agoniza, a Bela trata-a com desvelo. A Fera confessa-lhe que é incapaz de viver sem ela e que morrerá feliz só por tê-la visto voltar. A Bela compreende então que também ela não poder á viver sem a Fera, a quem ama. Confessa-lhe este amor e promete desposá-la, desde que a Fera se esforce por restabelecer-se.
Neste momento, o castelo enche-se de luzes e sons harmoniosos e a Fera desaparece. Em seu lugar, surge um formoso príncipe que conta à Bela ter sido encantado por uma feiticeira e transformado em Fera. O sortilégio havia de acabar quando uma bela jovem o amasse apenas por sua bondade.
Nesta história, ao elucidarmos todo o seu simbolismo, verificaremos que a Bela representa qualquer jovem ou mulher envolvida numa ligação afetiva com o pai, ligação que só não se estreita mais devido à natureza espiritual do sentimento que os une. Sua bondade está simbolizada na encomenda de uma rosa branca, mas por uma significativa distorção no sentido do pedido feito, a sua intenção inconsciente coloca ao pai e a ela sob o domínio de uma força que não expressa apenas bondade, mas bondade misturada a crueldade. É como se ela desejasse ser salva de um amor que a mantém virtuosa, mas em uma atitude irreal.
Aprendendo a amar a Fera, a Bela desperta para o poder do amor humano disfarçado na sua forma animal (e, portanto imperfeita), mas também genuinamente erótica. Presumivelmente este fenômeno representa o despertar das verdadeiras funções do seu relacionamento, permitindo- lhe aceitar o componente erótico do desejo inicial que fora reprimido por medo ao incesto.
Para deixar o pai precisou, por assim dizer, aceitar este medo ao incesto e tê-lo presente apenas na sua fantasia, até conhecer o homem animal e descobrir suas verdadeiras reações como mulher.
Desta maneira liberta-se, a si e à imagem que faz do homem, das forças repressivas que a envolvem, tomando consciência da sua capacidade de confia r no amor como um sentimento onde natureza e espírito estão unidos, no mais elevado sentido destas palavras.
No caso de mulheres mais velhas o tema da Fera pode não indicar uma necessidade de encontrar resposta para uma fixação pessoal ou de libertar uma inibição sexual, ou ainda qualquer outra significação que o racionalista de espírito psicanalítico possa descobrir no mito. Pode, na verdade, ser a expressão de um certo tipo de iniciação feminina, tão significativa no início da menopausa quanto no apogeu da adolescência, e possível de aparecer em qualquer idade em que se verifique um distúrbio entre natureza e espírito.
A Bela e a Fera é um conto de fadas que tem o encanto de flor selvagem, aquela que surge inesperadamente, despertando em nós um tal deslumbramento que não se percebe, no momento, a que classe, gênero e espécie de flora pertence. O mistério inerente a estes contos encontra uma aplicação universal não apenas nos mitos históricos mais importantes como também nos ritos pelos quais o mito se expressa, ou de onde deriva.
O tipo de rito e de mito que melhor expressa esta experiência psicológica está bem exemplificado na religião greco-romana de Dionísio e no culto a Orfeu, que o sucede. Ambos estes cultos permitiram uma iniciação bastante significativa aos "mistérios". Criaram símbolos associados a um homem-deus, de caráter andrógino, que se supunha possuir uma íntima compreensão do mundo animal ou vegetal, além de ser o mestre iniciador dos seus segredos.
A religião dionisíaca contém ritos orgiásticos que implicam a necessidade de o iniciado abandonar-se à sua natureza animal e, assim, experimentar em sua plenitude o poder fertilizante da Mãe Terra. O agente de iniciação a este "rito de passagem" do culto a Dionísio era o vinho: este devia produzi r o enfraquecimento simbólico da consciência, necessário para a introdução do noviço nos segredos da natureza ciumentamente guardados, cuja essência se exprimia através de um símbolo de realização erótica: o deus Dionísio unido a Ariadne, sua companheira, numa cerimônia matrimonial religiosa. Com o tempo, os rito s de Dionísio perderam a sua força religiosa emocional. Da preocupação exclusiva com os símbolos puramente naturais da vida e do amor surgiu um desejo quase oriental de libertação. A religião dionisíaca, com seu constante vaivém do plano espiritual para o físico e vice-versa, talvez tenha parecido muito selvagem e agitada a algumas almas mais ascética s, que interiorizaram então seus êxtases religiosos no culto a Orfeu.
JosephL. Henderson - Mitos antigos e o homem moderno, trecho do livro "O HOMEM E SEUS SIMBOLOS "
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