Hades sempre fora um deus soturno, solitário e recolhido em si. Nascera da união entre Cronos(Saturno) e Réia (Cibele). Cronos, deus do tempo e rei dos titãs temendo à profecia de que um dos filhos o iria destronar e aprisionar, devorou-o tão logo nasceu. Mais tarde, Hades foi vomitado pelo pai, depois que o irmão Zeus dera ao deus do tempo, uma porção mágica para ingerir. Saído das entranhas de Cronos, Hades lutou ao lado dos irmãos Zeus (Júpiter) e Poseidon (Netuno) contra o reinado do pai. Após a vitória foram delimitados os domínios de cada um. Tendo Poseidon o domínio dos mares, Zeus dos céus, e Hades do submundo.
Hades mostrava-se imune ao amor de qualquer deusa ou de qualquer mortal. Seu frio coração irritava Afrodite (Vênus), deusa do amor, que sempre fizera deuses e mortais sucumbirem à sua arte. Hades continuava com o coração intacto e frio. Corria solitário todas as partes do Érebo, que governava energicamente.
Segundo as lendas, Hades era invocado por seus devotos através da emissão de sons produzidos pelo barulho de suas varas ao baterem no chão. Um dia, Hades ouviu as varas que os humanos batiam sobre a terra, invocando-o com o sacrifício de duas cabras negras. Ao sentir o sangue quente dos animais molhar o chão, Hades pôs sobre a cabeça o capacete que o deixava invisível, emergindo das entranhas mais profundas da terra, até a superfície do mundo dos vivos, aceitando assim, o sacrifício.
Caminhando solitário, Hades avistou ao longe, no meio do bosque florido, a mais bela jovem que os seus olhos já tinham contemplado. Era kore. Com o coração a bater como nunca sentira dantes, o frio senhor dos mortos viu emergir de dentro dele um estranho e implacável calor. Invisível, aproximou-se de Core e das amigas. Carinhosamente soprou em seus ouvidos. Core sentiu aquele estranho sopro. Enquanto as amigas arrepiaram-se de temor, a jovem arrepiou-se acometida de uma ternura infinita. Kore sorriu, de repente, o que fez com que Hades se mostrasse visível aos seus olhos. A bela jovem viu surgir à frente o rosto daquele deus forte, olhar grave, de sorriso escorrido e gestos austeros. Apaixonado, Hades revelou-lhe o amor e o desejo de fazê-la a sua esposa eterna. kore ouviu a declaração de Hades, mas nada respondeu, precisava consultar a mãe, a deusa Deméter (Ceres), e o pai, o poderoso Zeus.
Mas Deméter, deusa da agricultura e dos alimentos, sabia que o reino de Hades, o seu irmão, era nas profundezas da terra. Decidiu que não se iria separar da filha, proibindo que ela desposasse o senhor da escuridão. Hades ficou inconsolável. Subiu ao Olimpo e pediu a ajuda do irmão Zeus. Estava perdidamente apaixonado por Core, já não conseguia viver sem ela. Zeus ouviu o irmão, como sabia da recusa de Deméter em deixar a filha partir para o Érebo, aconselhou a Hades que raptasse kore.
Um dia a bela Kore colhia os lírios e as violetas às margens do lago de água cristalina. De repente surgiu o mais belo dos narcisos à beira do lago, de uma cor tão reluzente que encantou kore. Gaia havia o feito surgir a mando de Zeus para atrair a donzella. Como se hipnotizada pela flor, ela debruçou-se sobre o lago para pegá-lo. Foi quando a terra abriu-se em um imenso abismo de escuridão, dele emergindo um carro de ouro puxado por cavalos, conduzidos pelo próprio Hades. Num impulso rápido e certeiro, o senhor do Érebo arrebatou a frágil e bela Core. Assustada, a jovem lançou um grande grito que ecoou pelos campos, enquanto o carro de ouro a conduzia até o Tártaro.
Deméter, deusa da agricultura e mãe de Perséfone, escuta os gritos de desespero de sua filha mas nada vê. Desesperada procura por sua filha durante nove dias, sem obter sucesso. Apenas no décimo dia Deméter consegue a informação através de Hélios (Sol), que tudo vê, e Hécate de que sua jovem filha está sob o cárcere de Hades. Zeus confirma o rapto. Revela à deusa que Core ao cruzar as fronteiras dos Infernos, tornara-se a esposa de Hades, e como rainha do Érebo, passou a chamar-se Perséfone (Prosérpina).
Sem poder atravessar as fronteiras do Érebo em socorro da filha, indignada com Zeus e Hades, devastada e em luto pela perda de Perséfone, Deméter abandou o Olimpo, indo viver com os homens da terra, se refugia em Elêusis. Abandonando os campos e as plantações, deixando de proteger as colheitas e escondendo as sementes Deméter provoca infertilidade ao solo. A primavera eterna desapareceu da terra, levando-a ao inverno e causando fome no mundo todo.
Zeus vendo a fome assolar a humanidade e a terra seca interviu diante de Deméter, mas a deusa só voltaria a proteger a agricultura e aos campos se tivesse a filha de volta. À face da catástrofe que se abatia sobre o mundo, Zeus enviou Hermes (Mercúrio), ao reino de Hades, com a ordem de que ele devolvesse Perséfone à mãe, para evitar que a humanidade faminta, rebelasse-se contra o poder dos deuses.
Hades não se contentou em perder a amada. Mas não poderia desobedecer a ordem de Zeus. Chamou Perséfone à sua presença. Diz a ela que deverá acompanhar Hermes até o mundo dos vivos, sendo devolvida à mãe. Triste, beija a face da amada. Em um último ardil, oferece-lhe uma saborosa romã como lembrança do seu amor. Mal sabia Perséfone que quem comesse qualquer fruto do reino de Hades, deveria retornar posteriormente a ele. Perséfone despediu-se do marido, regressando ao mundo dos vivos.
Deméter recebeu a filha com alegria. Os campos voltaram a florir. Ao abraçar a filha, a deusa lembrou-se de perguntar se ela havia comido alguma fruta no Tártaro, ao que a jovem respondeu afirmativamente, comera o bago de uma romã.
E agora diga-me como ele o arrebatou para o reino das trevas e escuridão, e com que truque o Hades enganou você?
Então a bela Perséfone respondeu-lhe assim: 'Mãe, vou te contar tudo sem erro. Quando o sortudo Hermes veio, rápido mensageiro de meu pai, o Filho de Cronos, e dos outros Filhos de Urano, pedindo-me que voltasse do Erebos para que você pudesse me ver com seus olhos e assim cessar de sua raiva e terrível cólera contra os deuses, Eu pulei de alegria imediatamente; mas ele secretamente colocou em minha boca comida doce, uma semente de romã, e me forçou a provar contra minha vontade. Também contarei como ele me arrebatou pelo plano profundo de meu pai [Zeus], o Filho de Cronos, e me carregou para as profundezas da terra, e relatarei todo o assunto como você pergunta. Todos nós estávamos brincando no lindo prado, Leukippe e Phaino e Elektra e Ianthe, Melite também e Iakhe com Rhodea e Kallirhoe e Melobose e Tykhe e Okyrhoe, formosos como uma flor, Khryseis, Ianeira, Akaste e Admete e Rhodope e Plouto e o encantador Kalypso; Styx também estava lá e Ourania e a adorável Galaxaure com Pallas que desperta batalhas e Ártemis se deleitando com flechas: estávamos brincando e colhendo flores doces em nossas mãos, açafrões macios misturados com íris e jacintos, e flores de rosa e lírios, maravilhoso de ver, e o narciso que a vasta terra fez amarelecer como um açafrão. Isso eu colhi em minha alegria; mas a terra se partiu abaixo, e de lá o forte senhor, Hades saltou e em sua carruagem dourada ele me levou embora, contra minha vontade, para baixo da terra: então eu chorei com um grito estridente. Tudo isso é verdade, embora me dói contar essa história.
A deusa desolou-se, sabia que a filha teria que voltar ao Tártaro todos os anos. Diante do ardil, ficou estabelecido por Zeus que Perséfone passaria uma parte do ano ao lado do marido, reinando no Érebo, outra parte ao lado da mãe, na terra e no Olimpo. Assim, durante o tempo que Perséfone despede-se da mãe e retoma o caminho do Érebo, a deusa recolhe-se à tristeza da sua saudade. Em consequência dessa tristeza, as árvores perdem as folhas e as flores, os campos ficam sem as plantas, o inverno invade a terra com o seu vento frio e cortante, deixando-a desolada e coberta pelo gelo. Quando Perséfone retorna aos braços da mãe, alegrando-lhe o coração, as folhas voltam verdes às arvores, as flores invadem os campos, trazendo a primavera novamente ao mundo.
É dito que Hades e Perséfone tinham uma relação calma e amorosa. As brigas eram raras, com exceção de quando Hades se sentiu atraído por uma ninfa chamada Minthe (ou Menta), e Perséfone, tomada de ciúmes, transformou a ninfa numa planta a “garden-mint” ou “hortelã”, destinada a vegetar nas entradas das cavernas ou, em outra versão, na porta de entrada do reino dos mortos. Perséfone interferia nas decisões de Hades, sempre intercedendo a favor dos heróis e mortais, sempre disposta a receber e atender os mortais que visitavam o reino dos mortos à procura de ajuda.
Embora esse seja um conto romantizado, os antigos relatos gregos e romanos de Perséfone concordam que Hades raptou Perséfone contra sua vontade e a estuprou. Nesta versão ela foi raptada contra vontade, mas observe que não se fala nada sobre o estupro.
O que fica um pouco difícil de definir é a linguagem que se perde nas traduções. Nem sempre o que dizemos em nossa língua natal se traduzido literalmente fará sentido em outra língua, porque a linguagem é muito coloquial, cultural e temporal... é necessário alguém que conheça bem as duas línguas, e tendo as vivenciado saiba traduzir o sentido e não as palavras, jargão por jargão por assim dizer. Então aí temos um problema, como traduzir a essência de um coloquialismo de séculos, quando a cultura era muito diferente. Já vi muitos defensores do romance de Hades e Perséfone devido a isso e não posso tirar-lhes totalmente a razão.
Nos tempos antigos, o rapto de donzelas era uma prática comum na Grécia. Um jovem simplesmente tinha que sequestrar aleatoriamente uma garota da casa de seus pais e isso significava que eles eram “casados” aos olhos da sociedade. E é por isso que alguns dizem que não havia nada de errado no mito de Perséfone, que simplesmente contava a história dessa antiga prática de um ponto de vista divino.
Receio que naqueles tempos as mulheres comuns não tinham liberdade ou direitos; ser sequestrada e estuprada e ser considerada “noivas” e depois “esposas” de seus estupradores não era exatamente incomum. Simplesmente, não era considerado grande coisa, era tradição. Deusas não eram exceção. Quase todas as deusas casadas do panteão grego tornaram-se esposas de seu marido por estupro, Hera, Thetis, Metis, Gaia, Helen, para citar algumas. Perséfone então foi estuprada, sequestrada e desrespeitada, assim como a maioria de seu sexo naquela época. o Hades não era nem mais nem menos ruim do que o grego antigo médio que seguia as tradições patriarcais. Mas Perséfone se ergueu acima de tudo isso para se tornar uma rainha real, poderosa e temida, basicamente roubando o submundo dos domínios do Hades, que depois dela se tornou apenas o nome do lugar, enquanto ela era sua governante.
O que acontece também é que a adversidade faz a habilidade, como que se vendo sem direitos sobre si mesmas e seu destino as mulheres se tornaram por necessidade mais manipulativas, era sua única saída. Moças então fingiriam o rapto diante de sua família e amigos para poderem ficar com aqueles de sua escolha. Esse ardil era sua única possibilidade de definir algo sobre seus destinos. Era isso ou elas acabariam sendo raptadas de verdade tendo sido dadas por seus pais sem aviso prévio.
Outro ponto a ser considerado é que a palavra "estupro" teria no contexto da história antiga o significado de "rapto", tendo o estupro como o entendemos outra palavra para distingui-lo. - Como disse a certeza se perde na tradução.
O Hino Homérico a Deméter
O mais antigo relato sobrevivente detalhado da história de Hades e Perséfone vem do “Hino Homérico 2 a Deméter”, que provavelmente foi composto por volta do século 7 aC ou por aí. O hino não deixa absolutamente nenhuma ambigüidade de que Hades raptou e estuprou Perséfone totalmente contra sua vontade; até descreve Perséfone várias vezes como "relutante". Aqui está a descrição da abdução de Perséfone por Hades do Hino homérico a Deméter, traduzida por Diane J. Rayor:
Canto sobre a venerada deusa Deméter de cabelos ricos e sua filha de pernas compridas que Hades arrebatou (o estrondoso e trovejante Zeus a entregou)
enquanto ela brincava com as filhas virgens de Ocean, longe do Grão Dourado de Deméter, que dá frutos brilhantes.
Ela colheu flores exuberantes do prado: rosas, açafrões, lindas violetas, íris, jacintos - e um narciso que Gaia cresceu como uma isca para a menina desabrochando, seguindo as ordens de Zeus, para agradar a Lord Hades.
Todos se maravilharam com a visão fascinante, tanto deuses imortais quanto pessoas mortais:
de sua raiz floresceram uma centena de cabeças perfumadas, e todo o céu acima, toda a terra, e a onda salgada do mar riu. Espantada, ela estendeu as duas mãos para pegar a flor encantadora - e um abismo se abriu na planície de Nyssian. Saiu Lord Hades, deus de muitos nomes, em seus cavalos imortais.
Pegando a garota relutante, ele a carregou em sua carruagem dourada, enquanto ela chorava e gritava alto chamando seu pai, filho de Cronos, o mais elevado e melhor."Nenhum dos deuses imortais ou povo mortal a ouviu chorar, nem a Oliveira brilhando com frutas - exceto a filha de Perses, Hékate de coração terno , velada em luz, ouviu de sua caverna e o filho brilhante de Lorde Hélios Hyperion ouviu a garota chamando seu pai, filho de Cronos.
Zeus sentou-se longe dos deuses, em seu templo ecoando orações, aceitando ricas oferendas de mortais.
Mas o irmão de seu pai, filho de Cronos com muitos nomes, Senhor dos Mortos, roubou a garota relutante em seus cavalos imortais, com um aceno de Zeus.
Enquanto a deusa ainda podia olhar para a terra e o céu estrelado, forte precipitação dos peixes abundantes do mar e dos raios do sol, ela ainda esperava ver sua querida mãe e a raça dos deuses que vivem para sempre: a esperança ainda encantava sua mente forte, embora ela sofresse.
Mas os picos das montanhas e as profundezas do mar ecoaram com seu grito eterno, e sua mãe deusa a ouviu.
A dor aguda apoderou-se de seu coração; com as duas mãos ela rasgou o véu de seus cabelos ambrosíacos, jogou uma capa preta sobre os ombros e disparou como um pássaro sobre a terra e o mar nutritivos, procurando: mas nenhum dos deuses imortais ou povo mortal diria a ela a verdade,
nem pássaros presságios vêm trazendo mensagens ”.
Como Arquétipo Perséfone é vulnerável tendo sido manipulada enquanto donzela pela mãe que a querendo apenas para si, não permitia que outros deuses interessados em cortejar a filha se aproximassem. Tendo sido enganada, caindo numa emboscada planejada por seu pai ao ordenar que Gaia a atraísse com a beleza e perfume de uma flor e por fim raptada por seu tio/marido. Não é então apenas o cenário de um estupro que a faz uma deusa vulnerável, embora todas deusas vulneráveis tenham vivido esse cenário na mitologia.
Vale ressaltar que essas lendas como as conhecemos, embora muito mais antigas nos foram contadas na visão da era patriarcal. Assim como novas versões mais românticas e suaves são contadas atualmente sobre a história de Perséfone e Hades nos livros infantis, o que não nos garante que havia uma versão anterior sobre essa e outras deusas? Que a ideia de colocar uma deusa como estuprada, representando não apenas sua vulnerabilidade por ser mulher, mas subjugando-a ao masculino que neste contexto seria o mais forte, único dono da sua vontade e sexualidade não tenha sido inserida pelo patriarcado justamente como uma forma de subjugar o feminino em sua psique, "retirando o seu poder" sobre si mesma?
A opressão como o controle começa na mente, são as ideias, aquilo em que se acredita como verdade que nos condiciona. Histórias são sementes, elas ensinam as nossas mentes ainda infantis como a vida é vivida, que há lugares que ocupamos, personagens que vestimos, o forte e o fraco, o feminino e o masculino, o bom e o mau cada qual produzindo um resultado, e a mente infantil inconscientemente vai se identificando com um, se colocando em um lugar e vivendo em seus limites na vida real.
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